Black Mirror: ficção imitando realidade (ou vice-versa?)
Black Mirror: ficção imitando realidade (ou vice-versa?)
O seriado de ficção da Netflix criou uma noção assustadora sobre o quanto a tecnologia nos domina diariamente. Prepare-se: o futuro da conectividade pode ser ainda mais invasivo e onipresente em nossas vidas
O seriado de ficção da Netflix criou uma noção assustadora sobre o quanto a tecnologia nos domina diariamente. Prepare-se: o futuro da conectividade pode ser ainda mais invasivo e onipresente em nossas vidas

Uma frase tornou-se bem frequente nos últimos meses: “Nossa, isso é muito Black Mirror!”. Era disparada por alguém que constatou, em alguma ocorrência do dia a dia, um domínio da tecnologia semelhante ao dos episódios do seriado Black Mirror, da Netflix. Após cinco anos com poucos capítulos e status de obra cult, a série tornou-se bem popular com sua terceira temporada, que estreou em outubro de 2016. Os dilemas (quase pesadelos) de humanos que sentem ter perdido o controle sobre suas vidas graças a gadgets, redes sociais, hackers e realidade virtual impressionaram. Porque muita gente teve a sensação de que aqueles enredos já têm similares no mundo atual.
O episódio “Queda Livre” (ou “Nosedive”) teve grande impacto ao imaginar um mundo em que todas as pessoas, através de seus smartphones, dão notas para outras com que cruzam – e a média de notas determina se o indivíduo terá privilégios ou será transformado em pária, se terá direito a viajar de avião ou nem poderá abastecer um carro velho. Ou seja, a humanidade sendo governada como uma enorme rede social, sujeita permanentemente ao julgamento alheio.
Ainda não é exatamente assim. Mas a ficção pode ter antecipado o futuro que alguns preveem. Em 2014, o americano PEW Research Center publicou Digital Life in 2025, um amplo estudo sobre o futuro da internet com opiniões e projeções de especialistas em tecnologia de vários países. Muitos apontaram que, dentro de poucos anos, as pessoas deverão estar on-line em tempo integral, mesmo enquanto dormem. E as informações sobre elas serão coletadas por seus utensílios domésticos, que estarão cada vez mais conectados, seguindo a tendência da “internet das coisas”.
Na pesquisa do PEW, Pamela Wright, chefe de inovação do Arquivo Nacional dos Estados Unidos, brincou com a possibilidade de alguém mentir que iria viajar para evitar um compromisso e ser desmascarado pelas informações coletadas pela garrafa de vinho que abriu em casa e pela cama em que dormiu. Um caso extremo de falta de privacidade, mas que ilustra como todos os dados que a internet vem reunindo sobre um indivíduo poderão ser rastreados por qualquer um que queira saber mais sobre ele.
Judith Donath, do Berkman Center for Internet & Society da Universidade Harvard, até vislumbrou um cenário bem parecido ao do já citado episódio de Black Mirror. Ela estima que o futuro deverá contar com um sistema de reconhecimento facial, no qual a imagem de um rosto será agregada a toda informação armazenada sobre seu dono.
Ela também diz que quem revela pouco sobre si na internet poderá sofrer marginalização – sem muita informação, pode parecer que aquela pessoa não é confiável.
Hoje, quando conhecemos alguém, pesquisamos seu nome e descobrimos algum hobby surpreendente ou outros detalhes. Mas aqueles que vemos na rua, no metrô ou num restaurante continuam sendo estranhos, enigmáticos. O reconhecimento facial vai mudar isso.
Judith Donath
Conectividade perpétua
A quantidade de pessoas conectadas cresce muito e permite imaginar que um dia toda a população estará cadastrada. Peguemos apenas o exemplo do Brasil. No 11º TIC Domicílios, estudo divulgado em setembro pelo Comitê Gestor da Internet e outras entidades, o país tem 102 milhões de internautas (58 % da população). O smartphone é o aparelho preferido para acessar a internet: 89% desses 102 milhões. Mais lá atrás, vêm computador de mesa (40%), notebook (39%) e tablet (19%).
Outro levantamento feito pela parceria Nielsen IBOPE indicava que o número de smartphones com acesso à internet no país cresceu de 9,8 milhões em 2000 para 76,6 milhões em 2015. Exceto na madrugada e começo da manhã, há pelo menos 44% de usuários entrando na rede com celulares em todas as outras faixas de horário. Os picos são entre meio-dia e 14h (53% usam nesse período), e de 18h às 22h (entre 55% e 63%).
Reforçando: tais índices são apenas de acessos via smartphone. Ou seja, o brasileiro está no mundo digital quase o dia inteiro. Disponível, acessível, localizável. Como acontece com outros povos.
A preocupação com essa presença constante motivou o jornalista canadense Michael Harris a publicar o livro The End of Absence (“O Fim da Ausência”). Ele constatou que quem está na faixa de 30 ou 35 anos (a dele próprio quando escreveu a obra) pertence à última geração que viveu num mundo sem internet, no qual ainda era possível desfrutar de momentos de solidão saudável e inspiradora.
Para ele, essa geração da transição é a última que teve a chance de sonhar acordada, sem pressão para interagir o tempo todo. Hoje, essa faixa etária se adapta ao ritual de dar likes, bater papo furado no WhatsApp, publicar fotos, jogar games ou qualquer outra ação digital – coisas que quem já cresceu lidando com internet faz com naturalidade, às vezes simultaneamente.
No livro, o autor cita o dr. Gary Small, pesquisador da UCLA na Califórnia, para quem as pessoas tendem à “conectividade perpétua” porque é algo irresistível para seus egos.
Harris concorda com Small e faz uma autocrítica, depois de recordar uma ocasião em que interagiu com 12 pessoas ao mesmo tempo e não concluiu nenhuma conversa. “Acho que sinto uma certa importância com tantos pedidos para se conectar comigo. Devo ser muito, muito importante. Devo ser alguém de quem se precisa, necessário, crucial”, ironizou o jornalista.
A situação descrita por Harris coincide com uma previsão de Bob Briscoe, pesquisador da British Telecom, para o estudo Digital Life in 2025. “A escala de interações possíveis pela internet irá atrair mais e mais pessoas para mais interações do que elas serão capazes de manter. Na média, isso irá fazer continuamente com que cada interação seja mais superficial.”
Iniciativas positivas
É claro que nem tudo é sombrio ou distópico na evolução tecnológica dos próximos anos. A integração total que se esboça pretende ser positiva para a melhora da qualidade de vida, com iniciativas até na produção de alimentos.
Um grande exemplo é a chamada “casa do futuro”, com todos os aparelhos conectados para a otimização do cotidiano. Um dos primeiros produtos a seguir tal conceito já foi lançado pela Samsung: o Family Hub, enorme refrigerador de duas portas com visor de 21 polegadas – praticamente um tablet embutido, para servir de mural, caderno de receitas ou fazer compras on-line.
Além disso, uma câmera no interior da geladeira monitora quais produtos estão nela e, através de um aplicativo, envia um alerta quando algum deles acabou. Especialistas arriscam que um dos próximos passos será as embalagens dos alimentos enviando mensagens para o morador ou mesmo para os comerciantes mais próximos, informando que estão para acabar ou já acabaram. Num mundo ideal, a reposição já seria enviada para a residência pelo vendedor.
Até mesmo cortinas podem ser “inteligentes”. O Slide é um pequeno aparelho para cortinas horizontais e pode ser programado para abrir e fechar através de um aplicativo sincronizado com Amazon Echo ou Google House. A Apple também já percebeu que as e-casas são uma boa aposta e lançou o HomeKit, plataforma de desenvolvimento da internet das coisas. Sua função é centralizar todas as aplicações domésticas num só lugar. A marca vai liberar licença para outras empresas desenvolverem dispositivos compatíveis.
O monitoramento da saúde e da forma física também tem grande apelo. Com o aumento de pessoas de terceira idade graças à maior expectativa de vida, manter controle dentro de casa é importante. A Philips criou uma caixa de remédios que se abre na hora marcada para tomá-los. Também envia mensagens para um enfermeiro ou parente confirmando que o medicamento foi consumido.
Já a aplicação de implantes tecnológicos ainda está longe de ser realidade, mas é o futuro dos wearables. Um dos projetos mais comentados é um contraceptivo desenvolvido pela empresa MicroCHIPS, que recebeu aporte financeiro do bilionário Bill Gates: um chip que libera, com auxílio de um aplicativo externo, pequenas doses de hormônios durante 16 anos para evitar gravidez.
Outro que pode surgir é o chip de identificação via radiofrequência, uma espécie de RG permanente. O Exército americano já estuda a viabilidade de aplicação do chip em seus soldados.
Adeus, privacidade
Desfrutar desses benefícios também significa ter seus dados recolhidos e cadastrados. E aí existe uma enorme ameaça à privacidade, como apontam vários especialistas. Com a troca de informações entre todos os aparelhos e entidades digitais, um indivíduo poderá ter tudo sobre sua vida (desde em que lugares esteve até qual comida pegou na geladeira). E o uso disso por hackers ou regimes autoritários é amedrontador.
Os mais pessimistas creem que as pessoas vão renunciar à privacidade em troca de vantagens. Nick Wreden, da Universidade de Tecnologia da Malásia, chegou a ser rabugento no estudo do PEW Research Center.
Já Hal Varian, do Google, apontou que existirá apenas uma minoria restrita que irá abrir mão de usar qualquer serviço para não liberar seus dados. Quase todo mundo deverá se sujeitar a ser monitorado porque as vantagens, facilidades e até mesmo a segurança deverão compensar.
Não haverá privacidade nem na selva, longe da civilização. As pessoas vivem mostrando que se dispõem a negociar suas almas em troca de um cupom de desconto de um dólar.
Nick Wreden
Um exemplo de praticidade sugerido: você entra numa loja, pega uma camisa e vai embora sem passar por uma caixa registradora. Uma vez já cadastrado e identificado, o valor da camisa automaticamente é debitado de sua conta ao passar pela porta.
A ideia de que, dentro de poucos anos, o humano será controlado por uma grande rede conectada pode ser vista com pessimismo. Ou com otimismo, quando se imagina que pessoas de línguas diferentes poderão se entender através de tradução simultânea.
Um grande passo acabou de ser dado com o novo sistema do Google Tradutor, que usa uma “rede neural” que se aproveita de um gigantesco banco de dados. Agora, o tradutor automático já é capaz de analisar uma frase, seu contexto e as nuances de um idioma em vez de apenas traduzir rigidamente palavra por palavra, muitas vezes com enganos. O aperfeiçoamento desse sistema nos próximos anos poderia acabar com as barreiras linguísticas, levando pessoas de idiomas e culturas diferentes a conversarem em tempo real, sem pausas para um tradutor. Isso facilitaria o entendimento e acabaria com discordâncias. Uma utopia entre tantos fatos distópicos que são “muito Black Mirror”.