Família sumô
Família sumô
Campeonato Gaúcho, realizado na cidade de Itati, evidencia o senso de união e de comunidade que mobiliza tanto os atletas como a torcida para que o esporte cresça no Estado
Campeonato Gaúcho, realizado na cidade de Itati, evidencia o senso de união e de comunidade que mobiliza tanto os atletas como a torcida para que o esporte cresça no Estado

A cerração já havia baixado, mas, contradizendo o ditado popular, o sol não estava de rachar, apesar dos evidentes sinais de que o dia seria quente. No entanto, embaixo de uma portentosa figueira, onde estava posicionada a mesa organizadora do evento, o clima não poderia ser dos mais aprazíveis, com direito a sombra e a uma leve brisa.
Eram 9h30min e os últimos preparativos para a competição ainda estavam em curso. Em menos de uma hora teria início as lutas válidas pelo 58º Campeonato Gaúcho de Sumô, realizado na cidade de Itati, no Litoral Norte. Não, não havia um gongo. Não, não havia um árbitro com um quimono que remetesse à época do Japão feudal. E não, definitivamente, não havia aqueles lutadores gigantes a ponto de serem percebidos pela Escala Richter quando caminham. Mais do que qualquer estereótipo, se algo define a modalidade e os envolvidos com ela no Estado é um incrível senso de comunidade.
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De certa forma, o sumô gaúcho transcende a mera questão esportiva. Ele é uma causa. Com tão poucos praticantes no Estado, aqueles que têm qualquer tipo de relação com as disputas compreendem que dependem apenas de si para que a coisa toda prospere. “A gente sabe que, ou trabalha junto, ou não consegue competir em nível estadual e muito menos nacional ou mundial. Por isso que digo que o sumô no Rio Grande do Sul é a família sumô. Existe uma amizade muito verdadeira, todo mundo se ajuda. Se perdeu, beleza, aperta a mão e abraça, não tem rivalidade"’, diz Adiecson Bobsin.
O lutador, de 27 anos e 115 kg, aliás, é um dos motivos da atual mobilização da comunidade. Tanto ele como Yuuki Sato, 17 anos, conseguiram vaga para participar do Campeonato Mundial, que acontece em Taiwan, entre os dias 20 e 22 de julho. Se já existe dificuldade para custear as viagens de ônibus para o Campeonato Brasileiro, em São Paulo, a situação é ainda mais complicada quando o destino está do outro lado do mundo. Por isso, no evento de domingo passado, tudo parecia voltado para ajudar ambos.
Existe uma amizade muito verdadeira, todo mundo se ajuda. Se perdeu, beleza, aperta a mão e abraça, não tem rivalidade
Adiecson Bobsin
Lutador de sumô
Não havia cobrança de ingresso para assistir às lutas, até mesmo porque a competição foi realizada ao ar livre, em frente à Associação Cultural Esportiva de Itati (Acei), com um imenso milharal funcionando como moldura ao redor. Contudo, a todo momento os organizadores lembravam ao público os produtos que estavam disponíveis na banca, desde camisetas (a R$ 30,00) a copos (R$ 3,00) e fatias de bolo (R$ 2,00). Entre uma luta e outra, crianças passavam para lá e para cá oferecendo sacolé a R$ 1,00 com a mesma finalidade de arrecadar fundos.
Também foram sorteados um vinho chileno e uma torta nega maluca. Somado tudo isso às vendas do almoço que tinha como destaque um galeto dos mais bem temperados e um aipim quase se desmanchando, o total arrecadado no domingo foi de R$ 4,1 mil. Além disso, segue em paralelo uma vaquinha virtual (Vakinha - Sumô RS Rumo a Taiwan 2018), na qual a meta a ser alcançada até julho é de R$ 20 mil para custear a ida a Taiwan, mas que até essa semana batia em apenas R$ 825,00.
A busca por viabilizar a viagem de Bobsin e Sato, no entanto, é apenas um dos aspectos que evidenciam o senso de comunidade do sumô gaúcho, que tem como principais polos regionais as cidades de Itati, Ivoti, Gravataí e Nova Petrópolis. Apesar de o evento contar com cerca de 30 competidores e pelo menos o dobro do número de torcedores, a impressão é de que todo mundo ali se conhece. Não por acaso, os lutadores são anunciados no microfone apenas pelo seu primeiro nome ou só pelo sobrenome. Ou seja: pelo nome que todo mundo conhece.
Além disso, mesmo se tratando de uma arte marcial que, é claro, envolve força e contato físico, não há qualquer demonstração de rivalidade. Muito pelo contrário. Toda vez que um dos lutadores é derrubado, o outro faz questão de levantar o oponente. Também os abraços vistos ao final de cada combate são sinceros e não puramente protocolares. Afora isso, em todas as oportunidades nas quais a decisão do árbitro principal foi contestada por um dos quatro árbitros de linha, ao invés de protestos por parte da torcida, o que se ouvia era uma piada aqui e outra ali com os competidores, que entravam na brincadeira da mesma forma.
A regra do sumô é muito simples: vence quem primeiro derrubar o adversário ou empurrá-lo para fora do dohyo
Mesmo para quem é completamente leigo no assunto, não é difícil compreender as regras do sumô: vence quem primeiro derrubar o adversário ou o colocar para fora do dohyo, como é chamada a arena de 4,55 metros de diâmetro, feita de uma mistura de barro e areia e tradicionalmente cercada por um círculo de palhas de arroz. Obviamente, nem tudo é válido. “Bom, não pode morder, nem dar soco ou chute”, explica Antenor Yuzo Sato, técnico, atleta e um dos organizadores do evento.
O segredo não está somente na força, mas sim no equilíbrio do quadril. “É um esporte muito completo, você não vai usar só os braços ou as pernas, mas sim o corpo inteiro. E não precisa usar apenas o sumô, pode adicionar outras artes marciais que também vão ajudar muito, como a luta greco-romana, o judô ou o próprio jiu-jitsu”, explica Yuuki. As lutas em si são muito rápidas, o que torna a competição como um todo bastante ágil. Dificilmente um combate excede os 30 segundos, tanto que K. Ueno (“Deixa só K porque tem muitas letras”, justifica) fica um tanto surpreso quando perguntado o que acontece se não há um vencedor depois de três minutos. “Mas isso é quase impossível de acontecer”, diz o experiente árbitro de 69 anos, vestindo uma gravata borboleta.
Os primeiros a pisar no dohyo são os meninos da categoria pré-mirim. A luta começa e menos de dez segundos depois termina. Nos dois primeiros combates, uma cena em comum: os dois guris que perderam se seguram até deixar a arena. Depois, correm chorando em direção ao colo das mães. “Calma, é assim mesmo, na próxima tu ganhas”, escutam como resposta. Já passa das 11h e as disputas agora são pelas demais categorias, incluindo aí a competição feminina. Aqui talvez seja o momento ideal para falar sobre as vestimentas no sumô. “Se chama mawashi. Não é fraldão”, brinca Bobsin.
Ao contrário do sumô profissional, praticado no Japão, nas demais competições os atletas estão liberados para usar outra roupa por baixo, o que virou quase uma regra em função do material. “No profissional, os mawashi são de seda. Os que usamos aqui são de lona crua”, explica o lutador de Itati. Se a roupa é diferente, a tradição é a mesma. Existe todo um ritual ao começo de cada um dos combates. Todo competidor primeiro esfrega as mãos para mostrar que está limpo. Em seguida, bate as palmas da mão e ao erguê-las para baixo reivindica as energias da terra, enquanto ao apontá-las para cima pede o poder dos céus.
No Japão, os principais lutadores são tratados como celebridades, mas precisam cumprir um código rigoroso
As diferenças do judô profissional praticado no Japão para o resto do mundo, porém, não são pequenas. A começar pela forma como o esporte é encarado. “Para os japoneses, o sumô é como se fosse o nosso futebol, é levado muito a sério”, afirma Yuuki, que com 15 anos participou do seu primeiro Mundial. Mas há mais. Na Terra do Sol Nascente, os campeões de sumô recebem tratamento de celebridade, mas precisam seguir um código rigoroso. Depois que no passado um lutador sofreu um acidente de carro e ficou impedido de competir, passou a imperar a proibição de dirigir. Se isso soa exagerado, o que falar do fato de que em lutas mais esperadas, dois adversários não podem viajar no mesmo avião, da mesma forma como ocorre com autoridades como presidentes e vice-presidentes?
Por outro lado, existe a obrigatoriedade de andar sempre de quimono para ser reconhecido. A dieta também é rígida, mas ao contrário, já que o objetivo é ganhar peso. Na maioria das vezes, não há café da manhã. Em compensação, o almoço é caprichado com um chankonabe, uma espécie de ensopado com peixes, carnes e verduras. É indicado que logo em seguida, os atletas tirem uma sesta, de modo que o organismo facilite o ganho de peso. “É praticamente como abandonar uma carreira para seguir a de sumotori. Lá o profissional tem que ser 100% dedicado ao sumô”, descreve Yuuki. Tudo isso não acontece sem consequências e, em geral, a expectativa de vida dos lutadores é 10 anos menor, tendo como principais causas de morte problemas de pressão alta e diabetes.